Seja através de projetos de lei e decretos, pelas ordens de reintegração de posse ou pela violência imediata dos ataques de proprietários rurais e seus pistoleiros - o ruralismo brasileiro faz de tudo para desautorizar o movimento indígena em luta, e assim cumprir a agenda colonial-bandeirante da expansão das fronteiras do capital no país.
O poder público é a gerência da fazenda; a linha de frente mais feroz é o parlamento. Estes querem entregar o país em definitivo, e ficam muito bravos com aqueles que os questionam. Os questionadores são os indígenas; sem dúvida, a ponta mais isolada do espectro político no país, dada a radicalidade in natura de sua jornada por uma terra melhor. Poucos são aqueles que se aliam aos povos indígenas, porque é preciso deixar muito para trás para efetivamente fazê-lo.
Mas estes parceiros, como gostam de dizer os indígenas, existem - e também tem tomado alguns pipocos do agrobanditismo. A bola da vez são as CPIs. Um bom negócio: 100% financiadas por dinheiro público, as possibilidades narrativas do palco estelar da comissão, na medida em que são completamente hegemonizadas pelo poder ruralista, são praticamente ilimitadas.
A moda das CPIs é inaugurada pelo agronegócio brasileiro, através de uma de suas bancadas parlamentares, justamente no estado que mais mata índios no país: o Mato Grosso do Sul. Estado com tradição de extermínio; e com muita tradição de resistência ao genocídio, cuja ação se deve única e exclusivamente à dinâmica complexa das populações indígenas que aqui habitam: os Kaiowa, os Guarani, os Terena, os Kinikinau, Kadiweu, Guato, os Ofaye. Estes são os protagonistas de suas histórias.
No entanto, os legisladores ruralistas e os donos do campo precisam exportar soja e abater carne; e para que não haja instabilidade comercial, é preciso negar que exista genocídio - negação executada com afinco no relatório oficial de outra CPI - onde proibiu-se o uso do termo "genocídio".
E os índios que dizem o contrário, que afirmam sofrer genocídio hoje? Não são eles quem o dizem, segundo os deputados. Estão pondo palavras nas bocas deles. "A culpa é do Cimi" - atualmente, o bordão preferido da elite agrária da região (especialmente quando esta elite precisa omitir-se a si própria, por exemplo, no dia seguinte a um ataque paramilitar contra os indígenas).
Esta é a tese central da CPI contra o Cimi: a entidade missionária manipula, treina e financia indígenas para ocuparem terras no estado.
A questão é: esta afirmação atribui aos povos originários, necessariamente, uma absoluta ausência da autonomia em seus fluxos e movimentações na luta pela terra. Este argumento não é uma novidade: na carta de 1500 ao rei português, Pero Vaz de Caminha descrevia os indígenas no Brasil como gente a ser domesticada, argila moldável, uma tábula rasa, uma página em branco. Assim são os índios, no ideario do parlamento - e nós somos seu controle remoto. Isto para nós é inaceitável.
Os séculos de resistência dos indígenas, de luta pela permanência e pela reconquista territorial, pela sobrevivência numa realidade - hostil a qualquer grupo societário que não se disponha imediatamente a semi-escravidão -, não significam nada na narrativa da comissão parlamentar. Afinal, segundo eles, o Cimi inventa dados para desestabilizar o país e promover a guerra no campo, utilizando-se dos indígenas para tal. Chegaram ao cúmulo do diabólico: creditaram a nós o assassinato do indígena Oziel Terena, atingido por um projétil de calibre 9 milímetros (bala de uso exclusivo da polícia) durante a reintegração de posse conduzida tragicamente pela Polícia Federal na terra indígena Buriti.
E assim, reunião após reunião, oitiva após oitiva, a CPI servia como uma fábrica de difamações, invencionices e tentativas tacanhas e surreais de criminalização da entidade, seus missionários e funcionários. De tabela, um sem-número de pessoas que, de alguma forma, contribuem ou contribuíram com as populações indígenas em luta no estado do Mato Grosso do Sul, também tomaram uma sova ao vivo e a cores do bloquete parlamentar.
Estamos falando de gente - de outras organizações, ou de nenhuma - nominalmente citada e difamada na CPI. Pessoas que levam um saco de arroz a acampamentos indígenas, pessoas que desenham mapas, jornalistas que escrevem textos, fotógrafos, técnicos contratados pelo estado para realizar levantamento fundiário, advogados que defendem indígenas no tribunal, padres, freiras, pesquisadores, procuradores, professores universitários - essa é a gama de pessoas ferozmente acusadas de cometerem crimes terríveis contra o estado, em nome de alguma intenção obscura…
Quem paga a conta, afinal, são todos estes seres humanos, cujos nomes e rostos (às vezes até os telefones!) foram expostos nas sessões em plenário, transmitidas ao vivo pela televisão, rádio e internet e, na sequência, nos apressados press-releases da Assembleia Legislativa (saídos especialmente dos gabinetes dos deputados ruralistas), em geral publicados na íntegra pela imprensa local do estado.
Enfim, o pacote perfeito, que terminaria com o relatório de 222 páginas lido monotonamente pelo relator da comissão, deputado Paulo Corrêa, e aprovado a toque de caixa em uma manobra patética, numa sessão que, para evitar a fadiga de contabilizar o minoritário voto contrário, durou pouco mais de cinco minutos.
Teria tudo sido perfeito - não fosse o preciso voto paralelo do deputado Pedro Kemp. O documento é uma mirada exaustiva sobre o espetáculo da comissão, desmontando cada uma das acusações contra o Cimi ao longo da CPI; desqualificando, ponto a ponto, a lamúria difamatória do agronegócio encaixotada em forma de relatório oficial de uma investigação parlamentar.
O voto de Kemp foi igualmente distribuído a todas e todos (como disse a presidente da CPI, Mara Caseiro, até o Papa receberia uma cópia do relatório oficial) - e agora é apresentado nesta página especial, tardia, porque carregamos água na peneira, mas que pretende deixar registrado na história o que a sessão de cinco minutos não permitiu.